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Projeto de lei substititui palavra “gênero” por “sexo” na Lei Maria da Penha; especialista avalia como retrocesso

03/02/2022

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações da Agência Câmara de Notícias)

Em tramitação da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2.746/2021 pretende substituir o termo “gênero” por “sexo” em três artigos da Lei Maria da Penha (11.340/2006). A proposta é de autoria do deputado Francisco Jr. (PSD-GO), parlamentar que critica a aplicação da lei “por vias transversais a outros grupos sociais”.

Segundo o deputado, o projeto “é o reforço do conceito de sexo biológico na forma estabelecida no artigo primeiro da própria lei, para definir seu público alvo, qual seja: a defesa das mulheres de qualquer tipo de violência”. O texto também determina que o atendimento psicossocial do agressor deve buscar, quando possível, a reintegração da família e reestruturação social.

A proposta tramita em caráter conclusivo e será analisada pelas comissões de Direitos Humanos e Minorias; de Defesa dos Direitos da Mulher; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

“Tentativa reducionista do alcance da Lei Maria da Penha para excluir algumas mulheres”

Para a advogada Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a proposta é descabida e revela um desconhecimento das ciências humanas e do Direito na contemporaneidade. “O Projeto de Lei 2.746/2021 pretende substituir a palavra ‘gênero’ pela palavra ‘sexo’, alegando erroneamente que visa ‘aperfeiçoar os mecanismos de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher’, como se encontra na ementa da propositura.”

Segundo ela, porém, o que se percebe é exatamente o contrário: “Uma tentativa reducionista do alcance da Lei Maria da Penha para excluir algumas mulheres de seu âmbito, especialmente as mulheres transexuais, em uma manipulação discursiva evidente quando diz na justificação que ‘na sua aplicação prática tem se verificado, por vias transversais, o atendimento de outros grupos sociais que não exclusivamente a mulher’. A presente proposição é o reforço do conceito de sexo biológico”.

“Isso mais me parece uma resistência de alguns parlamentares à incidência da LMP para a violência doméstica contra mulheres transgênero porque há decisões judiciais entendendo cabível sua aplicação às mulheres transexuais”, avalia a especialista. Adélia cita o entendimento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT de que a Lei Maria da Penha não distingue orientação sexual nem identidade de gênero das vítimas mulheres.

“O fato de a ofendida ser transexual feminina não afasta a proteção legal, tampouco a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar. O Enunciado 46 do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – FONAVID estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica às mulheres transsexuais, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5º da Lei 11.340/2006”, destaca a advogada.

De acordo com Adélia, “a proposta demonstra não conhecer as ciências humanas e o propósito da Lei Maria da Penha que abrange a proteção a todas as mulheres, ignora todos os estudos científicos contemporâneos da área de Ciências Humanas e Sociais, e parece desconhecer que o Direito disciplina as relações sociais”.

“E o que se entende quando se diz ‘gênero’? Refere-se a uma categoria de análise, da mesma forma como quando falamos de raça/etnia. Mas dentro do negacionismo da ciência que hoje aparece em vários espaços, o PL pretende mudar alguns artigos da LMP, inclusive o artigo 8º em seus incisos, quando a expressão gênero é acompanhada de raça e etnia, em flagrante reducionismo ao empregar a palavra sexo. ( cf PL art. Art 8º.VII – a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de sexo e de raça ou etnia; VIII – a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de sexo e de raça ou etnia; IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de sexo e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”, explica.

A substituição da palavra gênero por sexo feminino, segundo a advogada, representa um retrocesso, e viola a constituição e as Convenções contra a Discriminação e contra a Violência ratificadas pelo Brasil que fazem parte do Direito brasileiro. “Vale lembrar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – OEA (1994), ratificada pelo Brasil, e que foi base da Lei Maria da Penha cujo artigo 1º para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero,(…) É este PL inconvencional, portanto.”

“Sabe-se, pelas ciências sociais, que as diferenças contatadas nos comportamentos de homens e mulheres não são essencialmente dependentes do ‘sexo’ como questão biológica, mas sim definidos pelo ‘gênero’ e, portanto, ligadas à cultura. Decorrem do modo como as meninas são criadas, diferentemente dos meninos, de como em cada etapa da vida – infância, adolescência, maturidade – vivem seu corpo de forma diferente e sofrem os preconceitos, as discriminações e violências, e, como dissera Simone de Beauvoir, é a cultura, dominada pelos homens, que as tinha tornado submissas e com tão baixa autoestima. Daí a famosa frase de Beauvoir: ‘A mulher não nasce mulher, torna-se mulher’”, frisa Adélia.

Ela acrescenta: “Já ensinava Joan Wallach Scott que ‘gênero é um elemento constitutivo de relações sociais … [e] é um primeiro modo de dar significado às relações de poder’. Scott ainda esclarece que através da categoria gênero pode-se saber como as relações de poder – de dominação e de subordinação – são construídas”.

Para a especialista, vale refletir em quais contextos políticos os significados da diferença sexual são criados e/ou criticados e, então, verificar como, o projeto é reducionista. “As propostas legislativas podem reforçar os estereótipos e os preconceitos podendo contribuir para uma legislação mais excludente, como é o caso deste projeto que, se aprovado amputará a Lei Maria da Penha”, conclui.

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