20/01/2022
Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações do ConJur)
A Justiça de São Paulo determinou que um homem, pai de um jovem morto em abril de 2021 em acidente de trânsito, tem direito a acessar os arquivos salvos pelo filho na nuvem. O autor ajuizou ação porque não sabe a senha de desbloqueio do iPhone X definida pelo falecido, e a informação depende de liberação da Apple. A decisão favorável é da 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos.
O pai justificou que o aparelho de celular contém “inúmeros registros de família com imensurável valor sentimental, como fotos, vídeos e conversas”. O juiz Guilherme de Macedo Soares determinou a expedição de alvará judicial autorizando a empresa a transferir a conta Apple ID. De acordo com o magistrado, há evidente interesse da família no acesso a dados como fotos e outros arquivos de valor sentimental.
A empresa ressalvou que, em caso de falecimento do titular, é possível “e legítimo” o herdeiro desejar deletar o Apple ID (conta de login do usuário falecido) ou requerer a transferência de titularidade. A segunda hipótese confere acesso aos dados pessoais e informações privadas daquele que morreu e de terceiros que estejam armazenados na nuvem associada à referida conta.
Ao informar sobre um sistema interno de máxima proteção de dados dos usuários, a Apple sustentou que só transfere dados pessoais e privados de terceiros mediante a apresentação de alvará judicial. A exigência está prevista no Marco Civil da Internet (Lei 12.905/2014), que dispõe sobre a inviolabilidade e sigilo do fluxo das comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei.
Os advogados Marcelo Cruz, Octavio Rolim e Marcio Harrinson atuaram no caso.
Processo 1020052-31.2021.8.26.0562
Direitos da personalidade não podem ser herdados
A advogada Patrícia Corrêa Sanches, presidente da Comissão de Família e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, explica que o direito que surge imediatamente ao evento morte é o Direito Sucessório. “No entanto, não é absoluto: os direitos da personalidade não são passíveis de serem herdados, como é o caso em voga, abrindo-se a discussão sobre a privacidade ser, ou não, passível de ser violada após a morte”, explica.
“As informações privadas – como mensagens, fotos e vídeos, por exemplo – que foram resguardadas por senha não compartilhada pelo falecido, pertencem à esfera da privacidade e possuem proteção constitucional. Como tal, não podem ser violadas, a não ser que expressamente autorizado pelo falecido. É uma questão de segurança jurídica à privacidade”, complementa Patrícia.
Segunda a especialista, existem recursos nas plataformas on-line que podem ser utilizados pela pessoa, em vida, para deixar clara a intenção de permitir o acesso às suas informações privadas em caso de falecimento – como o contato herdeiro, por exemplo. “Outros recursos que podem ser utilizados são o testamento ou codicilo, dispositivos tradicionais para a exposição da vontade a ser considerada para após o falecimento.”
“Não existindo qualquer disposição expressa da pessoa falecida quanto ao acesso às suas informações privadas, não é cabível a concessão desse direito aos herdeiros, à exceção de suspeita de ação criminosa que, nessa hipótese, ficará sob análise do juízo”, pontua a advogada.
Contexto de herança digital
No caso da Justiça de São Paulo, a sentença, de forma expressa, invoca o direito sucessório, fazendo surgir, também, o questionamento quanto à competência do Juizado Especial Cível, segundo Patrícia Corrêa Sanches. “Nitidamente, a discussão está cingida no contexto de herança digital no que concerne à proteção da privacidade, ou seja, do acervo de conteúdo existencial. O livro editado pelo IBDFAM, Direito das Famílias e Sucessões na Era Digital, traz artigos muito importantes na formação doutrinária sobre esse assunto.”
“No último artigo dessa obra, eu defendo a impossibilidade de se violar o direito à privacidade no post mortem e, no mesmo sentido, Cíntia Burille e Gabriel Honorato, também coautores no livro, no artigo sobre as perspectivas para a sucessão de contas em redes sociais, defendem que os bens digitais de cunho existencial ou personalíssimo não devem ser transmitidos de forma automática.”
A diretora nacional do IBDFAM ressalta que o evento morte não é um inexistir, mas uma interrupção do iter existencial, não colocando fim aos direitos da personalidade, apenas os interrompendo e fazendo com que ainda gerem reflexos em sociedade. “A exemplo da preservação do direito à imagem, construída durante todo o percurso da vida social, mesmo que por um curto percurso – e seria justo que essa imagem fosse violada após o titular não estar mais presente?”, indaga.
“Imaginemos um escrito particular que revele fatos absolutamente privados e sobre os quais, o falecido jamais tornou público. Ou fotos e vídeos de recordações particulares – e sem considerarmos que as fotos e vídeos possam conter imagens de outras pessoas, assim como os escritos particulares podem trazer informações relativas a terceiros. Especialmente nesses casos, estaríamos diante da violação do sigilo de correspondência e de dados, que possuem expressa proteção constitucional (art. 5º, XII) como garantia fundamental.”
Propostas legislativas
O tema segue sem leis específicas. “A privacidade tem proteção constitucional e qualquer legislação que não a respeitar nascerá eivada pela inconstitucionalidade. São diversas as propostas legislativas a respeito da herança digital com previsão de alterações tanto no Código Civil, quanto no Marco Civil da Internet”, observa Patrícia.
De acordo com a advogada, existem propostas que estão em trâmite, a exemplo dos Projetos de Lei 6.468/2019, 3.050/2020, 1.689/2021, 410/2021 e 1.144/2021, todos apensados ao Projeto de Lei 3.051/2020 e recebidos na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática – CCTCI da Câmara dos Deputados.
“Embora o texto original dessas propostas legislativas não resguarde o acervo existencial, esperamos que o projeto final a ser aprovado garanta a proteção do direito à privacidade quanto aos bens digitais da pessoa falecida, em harmonia com o que preconizam a Constituição Federal, o Código Civil e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (13.709/2018)”, conclui a especialista.
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